segunda-feira, 23 de junho de 2014
Despedida da inocência
Cadê o menino que estava aqui? Cresceu. Foi para escola. Aprendeu a contar. Aprendeu a ler. Aprendeu a brigar com os amigos. Criou uma turma. Isolou-se no canto.
Cadê a inocência do menino que estava aqui? O menino cresceu. Ficou adolescente. Foi andar de skate. Levou um tombo. Ralou o joelho. Aprendeu a namorar. Terminou o namoro. Descobriu o choro. Tomou um porre. Conheceu a solidão. Foi andar de bicicleta. E cresceu. Foi para a faculdade. Entrou em crise. Criou uma banda. Foi morar sozinho. Inventou uma música. Não fez sucesso. Terminou o curso. Foi procurar emprego. Trabalhou em outro ramo. Conheceu uma garota. Ficou apaixonado. Fez um filho. Casou sem querer. Despediu-se das noitadas. Acordou nas madrugadas e cantou uma música. Comprou telefone, iPhone, tablet. Comprou um carro. Foi jogar bola e se divertiu muito mais.
Chorou de tristeza. Brigou com o amor. Separou-se. Pagou a pensão. Viajou de férias. Perdeu o emprego. Batalhou por outro. Ficou cansado. Ganhou estresse. Visitou a família e sentiu-se estranho. Mudou de religião. Ficou infeliz. Fez terapia. Namorou a psicóloga. Pediram um tempo. Voltaram cada um pra seu canto. Procurou um amor.
Cadê o menino que estava aqui? Despediu a inocência. Deixou a saudade. Largou o amor. Cadê o parquinho, a escola, a casa, a salinha de visita, o quarto, a cama? Foi bagunçada. Ocupada. Ficou vazia. Cadê a música na vitrola? Arranhou-se de tanto tocar para o vazio. Cadê o afeto? Morreu de solidão. Cadê a saudade? Sentiu dor e foi pra casa descansar. Cadê os abraços? Caíram no corpo sem ter ninguém para tocar. Cadê as mãos? Estão procurando uma nova distração por causa da ausência de outras para fazerem par. Cadê a alegria? Deu lugar à lágrima. Cadê o poema? Perdeu o poeta, que foi buscar a inspiração, o livro, a rima, o pincel, a harmonia que ficou sem lugar. Cadê o amor? Esse sentiu saudade de quando era simples, prático e funcional, ficou comovido e muito ressentido e pediu pra avisar que estará presente quando o mundo mudar.
Ita Portugal, in: Homens, Mulheres, Amores
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