quarta-feira, 26 de outubro de 2011
SOLIDARIEDADE!... eu desejaria saber ensinar a solidariedade a quem nada sabe sobre ela. Mas como ensiná-la?
Ensinar primavera às areias e gelos é coisa difícil. Gelos e areias nada sabem sobre primaveras... Pois eu desejaria saber ensinar a solidariedade a quem nada sabe sobre ela. Mas como ensiná-la?
Será possível ensinar a beleza de uma sonata de Mozart a um surdo? E poderei ensinar a beleza das telas de Monet a um cego? Há coisas que não podem ser ensinadas. Elas estão além das palavras. Os cientistas, filósofos e professores são aqueles que se dedicam a ensinar coisas que podem ser ditas. Por exemplo: acho possível desenvolver uma psicologia da solidariedade, uma sociologia da solidariedade, uma ética da solidariedade...
Mas, palavras que ensinam são gaiolas para pássaros engaioláveis. Os saberes, todos eles, são pássaros engaiolados. Mas a solidariedade é um pássaro que não pode ser engaiolado... Ele só existe em vôo. Engaiolados , estes pássaros morrem.
[...] Imagine isso: o corpo como um grande canteiro! Nele se encontram, adormecidas, em estado de latência, as mais variadas sementes - lembre-se da estória da Bela Adormecida! Elas poderão acordar, brotar. Mas poderão também não brotar. Tudo depende... As sementes não brotarão se sobre elas houver uma pedra. E também pode acontecer que, depois de brotar, elas sejam arrancadas...
Uma dessas sementes é a solidariedade. A solidariedade não é uma entidade do mundo de fora, ao lado de estrelas, pedras, mercadorias, dinheiro, contratos. Se ela fosse uma entidade do mundo de fora ela poderia ser ensinada e produzida em livros. A solidariedade é uma entidade do mundo interior. Solidariedade nem se ensina, nem se ordena, nem se produz. A solidariedade tem de brotar e crescer como uma semente. Veja os ipês floridos! Nasceram de sementes. Depois de crescer não será necessária nenhuma técnica, nenhum estímulo, para que eles floresçam. Seu florescer será um simples transbordar natural da sua verdade.
A solidariedade é como o ipê: nasce e floresce. Mas não em decorrência de mandamentos éticos ou religiosos. Não se pode ordenar: “Seja solidário!”. A solidariedade acontece como um simples transbordamento: as fontes transbordam...
Acho que esse é o sentido do dito de Jesus de que temos de amar ao próximo como amamos a nós mesmos. A solidariedade é a forma visível do amor. Pela magia do sentimento de solidariedade o meu corpo passa a ser morada do outro. É assim que acontece a bondade.
Mas fica pendente a pergunta inicial: como ensinar primaveras a gelos e areias? Para isso as palavras do conhecimento são inúteis. Seria necessário fazer nascer ipês no meio dos gelos e das areias!
RUBEM ALVES, crônica de 24/07/2011. Jornal “Correio Popular”, de Campinas-SP.
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