sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

"Nem mesmo a angústia.O peito vazio.


Sem contração.
Não havia grito.
E "eu te amo" era uma farpa que não se podia tirar com uma pinça.
Farpa incrustrada na parte mais grossa da sola do pé.
Ah, e a falta de sede. Calor com sede seria insuportável.
Não havia senão faltas e ausências. E nem ao menos a vontade.
Só farpas sem pontas salientes por onde serem pinçadas e extirpadas.
Nem mesmo a angústia. O peito vazio, sem contração. Não havia grito.
Dor? Nenhuma. Nenhum sinal de lágrima e nenhum suor. Sal nenhum.
Pensar no seu homem? Não, farpa na sola do pé.
A dificuldade é uma coisa parada.
É nessa hora que o bem e o mal não existem.
É o perdão súbito, nós que nos alimentávamos da punição.
Agora é a indiferença de um perdão. Não há mais julgamento.
A urgência é ainda imóvel mas já tem um tremor dentro.
Ela não percebe, a mulher, não percebe que o tremor é seu (...)
Ela só percebe que agora alguma coisa vai mudar, que choverá ou cairá a noite.
Mas não suporta a espera de uma passagem, e antes da chuva cair,
o diamante dos olhos se liquefaz em duas lágrimas.
E enfim o céu se abranda.

Terchos de Calor Humano, em A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector

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