sexta-feira, 27 de julho de 2012

O homem que criou asas


Era um homem, um homem comum, que um comum destino parecia controlar inteiramente
. Um animal bem treinado.
Um dia, sentiu um incômodo nos dois ombros, distensão muscular, má posição no trabalho…
Foi piorando e resolveu olhar-se no espelho, de lado, inteiro e nu depois do banho:
não havia dúvida, duas saliências oblíquas apareciam em sua pele abaixo dos ombros.
Teve medo mas decidiu não comentar com ninguém,
e como não transava frequentemente com a mulher, conseguiu esconder tudo quase um mês.
Fez como via fazer sua mulher: pegou de cima da pia um espelho redondo no qual ela ajeitava o cabelo,
e passou a analisar todo dia aquele fenômeno que em vez de o assustar agora o intrigava.
Curioso mas sem sofrer – pois não doía -, foi observando aquilo crescer.
E pensava:
Nem adianta ir ao médico, porque se for um tumor (ou dois) tão grande
não tem mais remédio, é melhor morrer inteiro do que cortado.
Certa vez, quando estava se masturbando no banheiro,
na hora do prazer sentiu que elas enfim se lançavam de suas costas, e viu-se enfeitado com elas,
desdobradas como as asas de um cisne que apenas tivesse dormido e
acordando, se espojasse sobre as águas.Ficou ali, nu diante do espelho, estarrecido.
Agora ele não era apenas um homem comum com contas a pagar, emprego a cumprir,
família a sustentar, filhos a levar para o parque, horários a cumprir:
era um homem com um encantamento.
Eram umas asas muito práticas aquelas, porque desde que usasse camisa um pouco larga
acomodavam-se maravilhosamente debaixo das roupas.
Em certas noites, quando todos dormiam, ela saía para o terraço, tirava a roupa e varava os ares…
Sua mulher notou alguma coisa diferente no corpo do seu marido.
Estava ficando curvado, tantas horas na mesa de trabalho. Nada mais que isso.
Embora a mãe lhe tivesse dito que “com homem é sempre melhor confiar desconfiando”,
daquele seu homem pacato ela jamais imaginaria nada muito singular.
- Você vai acabar corcunda desse jeito, aprume-se – ela dizia no seu tom de desaprovação conjugal.
As coisa se complicaram quando, já habituado à sua nova condição, o homem-anjo olhou em torno e,
sendo ainda apenas um homem com asas, sentiu-se muito só.
E começou a pensar nisso.
E olhou em torno e se apaixonou.
Na primeira noite com sua amante, esqueceu o problema, tirou a roupa toda,
e quando ela começava a apalpar-lhes as costas o par de asas se abriu,
arqueou-se unindo as pontas bem no alto por cima dele, na hora do supremo prazer.
Mas essa mulher/amante não se assustou, não se afastou.
Apertou-se mais a ele, e dizia: vem comigo, vem comigo, vem comigo.
E abriu suas asas também.

- Lya Luft

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