segunda-feira, 20 de setembro de 2010

É preciso arejar os ambientes e tirar o mofo da vida




A vida levanta pó que se farta. É no trabalho, os amigos, os amores insatisfeitos, a rotina que nos engole. São as crianças e o casamento, os pais e os irmãos, os sobrinhos (e a acrobacia com que os iludimos), e mais até.Fica no ar, cola-se a nós, respiramo-lo com parcimónia, e entranha-se (bem fundo) como uma sereia que encanta e nos adormece em sossego.

O pó dos dias não nos irrita as mucosas: inflama o nosso olhar e aloja-se, como um vírus que aé encontra um hospedeiro, no modo como deixamos de escutar com o coração e nos contentamos em ouvir. Resignadamente, em ouvir. Mesmo que, para fugirmos dele, como uma melga que se insinua nos ouvidos, levantemos mais pó, e mais pó, evitando que ele assente, devagar, e nos puxe – enfim – para pensar.

O pó dos dias leva a que imaginemos que a vida corre por si. Sem que precise de um mestre de costa ou de um homem ao leme. Conduz-nos para veredas íngremes e para couraças escorregadias. Faz das pessoas vultos, e parece tornar opaco o nosso querer. Ah!, e obriga-nos a lamentar, quase para sempre, o quanto desejávamos transformar o pó dos dias numa manhã de sol. Se pudéssemos... é claro.

Nem sempre querer é poder. Muitas vezes, quer-se e não se pode. A diferença está entre querer... e acreditar que se pode.

Sempre que acreditamos, os milagres acontecem. E aquilo que falta a quem quer (e não pode) é um "vai, que eu olho por ti". Alguém que, algures na nossa vida, nos tenha dado a suprema bondade de acreditar naquilo em que acreditamos, e de querer o que nós queremos, que transforma o querer em poder.

Em verdade, o truque esconde-se neste pequeno pormenor: quando se quer, ninguém consegue ir – mesmo que vá pelos seus sonhos – contra os que, afirmando que gostam de nós, jamais nos dizem: "vai, que eu serei a tua âncora". Ou "vai, que eu olho por ti". (Por vezes dizem mesmo num silêncio cobarde "se fores, deixo de olhar para ti").
Todos nós precisamos duma âncora para que os milagres aconteçam e, assim, se vença o pó dos dias. E talvez seja isso o que a vida tem de mais desconcertante: não são os ventos nem as marés, só as âncoras... nos permitem navegar!


* Esse texto, ele faz parte do livro "Chega-te a mim e deixa-te ficar" do escritor e psicólogo português Eduardo Sá. Obviamente, o texto está escrito em português de Portugal, portanto, eu esclareço que "melga" é o mesmo que "muriçoca" ou "pernilongo", e que "cobarde" é o que conhecemos como "covarde" mesmo.

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