terça-feira, 28 de dezembro de 2010

“A Passagem do Ano” ....Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.



“O último dia do ano não é o último dia do tempo.

Outros dias virão e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.

Beijarás bocas, rasgarás papéis, farás viagens e tantas celebrações de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral, que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor, os irreparáveis uivos do lobo, na solidão.

O último dia do tempo não é o último dia de tudo.

Fica sempre uma franja de vida onde se sentam dois homens.

Um homem e seu contrário, uma mulher e seu pé, um corpo e sua memória, um olhar e seu brilho, uma voz e seu eco, e quem sabe até se Deus…

Recebe com simplicidade este presente do acaso.

Mereceste viver mais um ano.

Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.

Teu pai morreu, teu avô também.

Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte, mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo, e de copo na mão esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.

O recurso da dança e do grito, o recurso da bola colorida, o recurso de Kant e da poesia, todos eles…e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.

O corpo gasta, renova-se em espuma.

Todos os sentidos alerta funcionam.

A boca está comendo vida.

A boca está entupida de vida.

A vida escorre da boca, lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.”

Feliz Ano Novo!!
Carlos Drummond de Andrade

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