sábado, 29 de janeiro de 2011

Pintar cabelo é um manifesto feminino. O equivalente ao serviço militar obrigatório.



Depois de dezoito anos, é mais do que um experimento, é mudar de vida.
Pode sinalizar uma separação, um novo namorado, último recurso para adiar uma dieta, desistência da terapia.
Serve também para desafiar as mechas maternas.
Tanto que a menina desmama quando pinta os cabelos.
Um contra-ataque ao coque e trança, artesanatos de postura impostos dentro de casa para ir à escola e festas.
Uma revolta ao regime tirânico do laquê, mousse, cera e gel, que obrigava o rosto a permanecer imóvel.
Corresponde a mais importante desobediência doméstica.
É quando a moça se desarma, se ama e assume a sexualidade de sua brincadeira.
Superior ao signo e ao histórico escolar, a mulher entende que é pelo cabelo que se apresenta ao mundo.
É pelo cabelo que ditará seu perfil, provará que é dramática, romântica, tímida, expansiva, agressiva, esportiva.
Com a bolsa e as sobrancelhas, forma a sagrada trindade da personalidade.
A idealização do marido não alcança a idealização cromática dos fios.
Ela delira com um cabeleira de bordas, redonda, macia, desembaraçada, lustrosa.
Aquela espontaneidade onde não se enxerga o fim.
Uma cabeleira infinita.
Dobrando o oceano dos ombros.
Vibrante.
Mas é quase impossível concretizar a metamorfose.
Por mais que cada uma siga as instruções da bula.
É como imitar as pinceladas de Van Gogh.
Como imitar as formas sensuais das banhistas de Monet.
Como imitar os movimentos de tons da ciranda de Matisse.
Pintar os cabelos será a primeira traição que o mulherio enfrenta.
A dureza já encontra seu auge no início.
Nem toda mulher quer ser loira, mas toda mulher precisa ser loira.
É um pedágio para encontrar a coloração do sonho.
Se ousar partir do matiz original para repetir as caixinhas, o espelho quebra.
Obrigatório clarear para diminuir o desastre.
Na ambição de ser ruiva, uma morena descobrirá o vermelho beterraba, longe do brilho e da intensidade da embalagem.
Terá na cabeça um incêndio apagado, sem labaredas, terra devastada, cinzas e fuligem.
Só com muita generosidade para chamar aquilo de ruivo, é o mesmo que confundir espinhas com sardas.
Muçulmanas, católicas, evangélicas, luteranas, taoístas, batistas…
Não há religião que salve.
O milagre nunca acontece conforme rezado.
Tingindo de amarelo verão, na ânsia de reproduzir os ares praianos de surfista e aventureira, o máximo que conseguirá é cabelo palha de inverno.
A decepção não tem fundo.
São quarenta minutos de expectativa frustrada.
Cereja terminará marrom.
Após cinco lavagens, torna-se água suja.
O preto azulado — que ninguém avisa — dependeria de licitação da Secretaria de Obras.
É, essencialmente, piche.
Para tirar, apenas cortando.
Conhecerá a maldição de fadas.
A dissolução do castelo.
Ao adormecer como Marilyn Monroe e seu fulgurante platinado, acordará como Cicciolina em fim de carreira.
Miragem – Fabrício Carpinejar

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